Rabi’a al-Masri, a grande mestra sufi
Poucos estudiosos sérios da história do Islã sabem que as mulheres, ao menos nos primeiros séculos da Hégira, viviam no centro do espaço público, participando proativamente na vida da Umma (comunidade ou Eclésia islâmica). Participaram, inclusive, de campanhas guerreiras, como a famosa Umm Haram, que pertencia ao clã do profeta Muhammad, e que morreu corajosamente numa batalha em 649 d.C.
Outras mulheres desempenharam papéis fundamentais na história e no fortalecimento do Islã: seus nomes aparecem nas Cadeias de Transmissão dos hadith proféticos, formam parte da linhagem espiritual dos escritores, sendo reverenciadas como verdadeiras poetisas e filósofas gnósticas. Isso sem nos esquecermos das governantes, além das que foram companheiras, instrutoras ou discípulas de grandes mestres muçulmanos, como Fátima de Nishapur, a grande mestra de Bayazid Bistami, e Dhu’n Nun al-Misri, a que As-Sulami dedica consideráveis elogios; ou Shawana, que vivia em Al-Ubuya, que predicava o espírito do Alcorão majestosamente para as multidões. Para ouvi-la acorriam ascetas sufis e adoradores para ouvi-la e se extasiarem com seus sublimes ensinamentos esotéricos.
Temos também Al-Wahatiya Umm al-Fadl, segundo grandes mestres sufis, “única em seu discurso, seu conhecimento e seus arroubos místicos, e que era companheira de grandes mestres espirituais. Diz-se que o grande mestre sufi e imã Abu Sahl Muhammad Ibn Sulayman acudia às sessões místicas de Umm al-Fadl, juntamente com diversos outros líderes do mundo sufi, como Al-Razi, Al-Farraa e Abdala al-Muallim. E até mesmo o famoso Ibn Arabi tecia loas a essa grande mestra, comparando-a às grandes mestras ascetas de Córdoba. (Sim, existia uma ordem sufi feminina na Espanha islâmica, cujas mestras escreveram inúmeros manuscritos filosóficos em veneração ao Bem-Amado, ou seja, a Deus.)
É importantíssimo conhecer a obra dessas grandes iniciadas islâmicas e se aprofundar na sua excepcionalidade, para quebrar o falso paradigma da atuação secundária das mulheres no universo islâmico, pois em nossos dias alimentam-se inúmeras fantasias do discurso ocidental sobre o Islã e seu aspecto esotérico.
As grandes mulheres místicas foram importantes não só no sufismo, senão na espiritualidade e na organização da sociedade islâmica em geral. Infelizmente, com o passar do tempo, o mundo islâmico assistiu à repressão de sua identidade feminina, coisa que as investigadoras muçulmanas designam como “a grande ocultação”, resultando na “tradição velada”.
A Grande Mestra Rabi’a
Uma das maiores mestras do sufismo é praticamente desconhecida no Ocidente, mesmo entre as pesquisadoras do feminismo. O historiador Tabuyo apresenta Rabi’a como um ser extraordinariamente emocional em sua concepção acerca do Amor: “Parece conveniente situar-se esse amor em sua verdadeira dimensão, ou seja, um amor que não se confunde com sentimentalismos nem é uma projeção de perturbações mentais ou transtornos afetivos, senão um Amor sábio, régio, vigoroso, incondicional”.
Na verdade, não se tem muitos detalhes acerca da vida da mestra sufi Rabi’a. Os biógrafos têm baseado suas histórias em escrituras antigas que já não estão disponíveis atualmente. Uma mescla de lendas, milagres e contos populares recheiam sua biografia. Podemos ver, sem embargo, que era uma mulher de caráter excepcional, cuja vida esteve cheia de acontecimentos belos e extraordinários. Depois de ler sua biografia, teremos de tentar separar o que poder ser traços de sua vida do puro exagero piedoso.
Não obstante, todas as biografias são unânimes em afirmar o excelso caráter de Rabi’a al-Qaysiya, ou Rabi’a al-Adawiya, e o impacto que ela teve em seu tempo.
Rabi’a de Basra ((714‐801 d.C.) viveu cerca de 80 anos onde hoje é o Iraque. Nasceu em um período extremamente turbulento, devido ao desenvolvimento do Islã. Somente 20 anos depois do falecimento do Profeta, o Islã havia se estendido por todo o Oriente Médio e Norte da África, num grau inaudito de crescimento para uma religião. Ou seja, em nenhum outro tempo houve uma propagação tão assombrosa do fervor e dos ideais religiosos. Porém, com esse crescimento apareceram os problemas.
Os seguidores do islamismo começaram a se afastar de seu enfoque inicial na Vida Interior, concentrando-se em seu lugar no trabalho de dirigir um império gigantesco. As imensas tarefas administrativas, políticas, educacionais e sociais mudaram fundamentalmente a prática do Islã. Um número considerável de religiosos, nesse ínterim, foi batizado com o nome de “sufis”, por tentarem manter o trabalho interior como alvo principal da prática islâmica. Dois membros sufis da época tiveram quatro filhos, dos quais a quarta era Rabi’a (que significa “a quarta”, por ser a caçula de quatro).
De acordo com Farid Uddin Attar, grande poeta iraniano e mestre sufi, os pais de Rabi’a, que se tornaram sufis, eram muito pobres. Depois do casamento, mudaram-se para os limites do deserto iraquiano, perto da cidade de Basra, onde procuraram estabelecer uma casa e viver modesta e piamente. Tiveram três filhas, e depois que a mãe ficou grávida pela quarta vez, o pai, Ismael, teve uma visão mística de que Rabi’a seria uma criança muito especial.
Quando Rabi’a nasceu, a casa estava completamente vazia de qualquer alimento ou demais provimentos. Não havia na casa nem sequer um pedaço de pano para envolver o pequeno bebê, tampouco uma gota de azeite para acender a lâmpada. A esposa gritou para seu esposo: “Por favor, vá aos vizinhos e rogue por algum azeite, de maneira que possamos ao menos ungir nossa filha e ter algo de luz”. Ismael se sentia envergonhado e se recusou a fazê-lo. Sua esposa continuou a chorar, e Ismael teve tanta vergonha da situação de pobreza que se sentou em um canto e pousou a cabeça entre as pernas. Dormiu e teve um sonho, uma visão do profeta Muhammad. Nesse sonho o Profeta lhe disse: “A menina que acaba de nascer é uma rainha entre as mulheres e será a intercessora para 70 mil de minha comunidade.
Amanhã mesmo deverás visitar Issa Zadan, o governador de Basra. Em um pedaço de papel escreve esta mensagem: “A cada noite você me envia cem bênçãos, e às sextas quatrocentas, porém na noite desta sexta você se esqueceu de mim. Como expiação, deve dar quatrocentos dinares ao homem que está trazendo esta nota, os quais terão sido licitamente ganhos”.
Quando acordou, Ismael comentou a experiência onírica à esposa. E no dia seguinte, viajou para o palácio de Basra, levando a carta ao governador. Então, a carta foi entregue a um emissário, que a repassou ao Emir. Quando o Emir dos Crentes leu a carta, ficou espantado: “Oh, isso é uma verdadeira mensagem de Allah, o Todo-Poderoso! É verdade, ontem, sexta-feira, me esqueci de orar as quatrocentas orações”.
O governador declarou, imediatamente: “Façam com que 2 mil dinares de ouro sejam distribuídos aos pobres da cidade, e que mais quatrocentos dinares sejam dados ao dono desta carta. Digam a esse mensageiro que eu ficaria muito feliz de me reunir com ele, ainda penso que não sou digno de convidá-lo a meu palácio. Ficaria feliz se o visse e varresse o chão com minha barba em sua presença… E digam-lhe que se precisar de algo, que me pode pedir sempre”.
Ismael deleitou-se em receber a preciosa quantia e imediatamente comprou algumas provisões para a casa e para a família, porém, boa parte de todo o dinheiro doado foi distribuído a famílias mais pobres do que eles…
Ao crescer e ter idade responsável, Rabi’a parte para o deserto para uma vida solitária, depois se instala em uma modesta casa na periferia de Basra, praticamente desprovida de tudo. Um biógrafo dessa mística sufi afirma que ela se fixou mais no isolamento da santidade do que na vida profana. Inclusive recusou-se a contrair matrimônio com um rico pretendente, a exemplo da Virgem Maria. Rabi’a respondeu que as riquezas trazem somente ansiedade e tristeza, enquanto a vida de entrega e doação mística traz a verdadeira paz…
Alguns Ensinamentos de Rabi’a
Um dia, uma multidão viu Rabi’a correndo apressada com uma tocha na mão e um balde de água na outra. Então perguntaram: Senhora do Outro Mundo, para onde vais? Que andas buscando? E ela contestou: Vou para o céu… quero atear fogo ao Paraíso e apara o fogo do Inferno. Assi, Inferno e Paraíso desaparecerão e só ficará Aquele a quem se busca.
Então, pensarão em Deus sem esperanças ou temores, e, deste modo, O adorarão verdadeiramente. Pois, se não existisse a esperança do Paraíso nem o temor ao Inferno, acaso não adorariam o Veraz? Não O obedeceriam? Não amariam a Ele por si mesmo?
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Tu – disse Hassan a Rabi’a – conheces o porquê das coisas, porém, a nós não é dado conhecê-lo. Fala-me do que te foi revelado. E Rabi’a respondeu: Fui ao mercado com dois rolos de corda, os vendi por duas moedas para comprar comida. Colhi uma moeda em cada mão; não quis pô-las juntas para que não me desviassem da Senda Reta.
Poemas de Rabi’a
Ó meu Deus…
Quantos bens me destinaste neste mundo,
Dai-os a teus inimigos,
E quanto me tenhas reservado no outro mundo,
Dai-os a teus amigos.
Porque a mim, Tu me bastas.
Quantos bens me destinaste neste mundo,
Dai-os a teus inimigos,
E quanto me tenhas reservado no outro mundo,
Dai-os a teus amigos.
Porque a mim, Tu me bastas.
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Perguntou-se a Rabi’a em que momento o servidor de Deus se encontra em um estado de abandono, e ela respondeu: Quando a desgraça o alegra tanto quanto a felicidade.
Rabi’a perguntou um dia a Al-Thauri: O que é para ti a generosidade? E ele respondeu: Para os filhos deste mundo é dar abundantemente de seus próprios bens. Para os filhos do Outro Mundo, é dar abundantemente de si mesmos… E Rabi’a contestou: Não, tu te equivocas. O que é então para ti, Rabi’a? A resposta dela: É servir com amor, sem esperar por isso nenhuma vantagem ou recompensa.
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Conta-se que um dia Rabi’a recebeu a visita do Anjo da Morte. Quem és, perguntou a mestra. O Anjo respondeu: Sou o demolidor das delícias, o que deixa para trás viúvas e órfãos. E Rabi’a: Por que te apresentas em teus aspectos mais cruéis? Poderias simplesmente dizer: Sou aquele que une o amante ao Amado!
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Um dia, alguém perguntou a Rabi’a: Sou um pecador, minhas faltas e minhas desobediências são muitas, porém, se eu me arrependo, Deus me perdoará? Rabi’a contestou: Não! Só se primeiro Deus te perdoar é que tu te arrependerás. Quando pedimos perdão a Deus, primeiro deveremos perdoar nossa falta de sinceridade ao pedir perdão.
Fonte:http://www.gnosisonline.org/mulher-gnostica/rabia-al-masri-grande-mestra-sufi/
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