A BELEZA DA FUTURA DALAI LAMA: BUDISMO E FEMINISMO-Padma Dorje
mar 8, 201721 minutos de leitura
Embora o budismo tenha ao longo de sua história muitas vezes corroborado visões machistas — e seguir um caminho espiritual na Ásia sempre tenha sido mais difícil para as mulheres do que para os homens — há também motivos para regozijar com a presença do feminino em forma exaltada, particularmente no budismo tibetano.
De forma alguma tentando isentar a estrutura institucional do budismo, é preciso contextualizar que uma cultura machista necessariamente colore de machismo todas as atividades que ocorrem nela.
A maioria de nós que vê valor no darma gostaria que ele fosse uma força sempre revolucionária, sempre em contraponto com as injustiças do mundo.
No entanto, a característica revolucionária do budismo não é propriamente temporal. Particularmente em termos temporais o budismo até eventualmente se engaja na transformação das estruturas — por exemplo, um mestre pode diminuir a caça e o abate de animais em toda sua região de influência, e sua presença benévola pode até diminuir o roubo, a violência ou o tabagismo — mas de modo geral as circunstâncias políticas e sociais são produtos de carma, e um praticante que se engaje prioritariamente nos galhos perde, por assim dizer, as raízes. O foco, portanto, é eliminar as aflições mentais que produzem os hábitos que produzem todos os sofrimentos, e em primeiro lugar em nossa mente — e então com isso o mundo se transforma.
Mas este é um processo difícil de medir no contexto do tempo histórico, e cujos heróis, em sua maioria, são anônimos.
Como Shantideva disse no seu Caminho de Bodisatva, vale mais usar uma sandália do que tentar cobrir o mundo de couro.
Então é esse o motivo pelo qual o budismo nem sempre se engaja explicitamente em transformação social, e porque muitas vezes pareceu conivente com o que parecem, ou foram de fato, injustiças.
Independentemente disso, alguns aspectos, no entanto, seguem causando perplexidade na mente moderna — e isso algumas vezes ocorre por pura falta de conhecimento de como o budismo vê o mundo, que é de fato radicalmente diferente de qualquer outra forma de religião ou sistema de pensamento.
Por exemplo, recentemente Sua Santidade o Dalai Lama reafirmou que provavelmente renascerá como uma mulher. Ele já havia dito isso outras vezes, mas nessa última ocorrência ele brincou com o repórter americano que seria “uma mulher bonita, é claro”. Isso causou muita celeuma, já que o discurso feminista — e o bom senso — deixam bem claro que o valor de uma mulher não está em sua beleza. Além disso, é bastante evidente, e uma situação digna de pesar, que nossa sociedade — ainda mais extremamente que no passado e em outras sociedades — de fato muitas vezes objetifique as mulheres como meros objetos decorativos para o olhar masculino.
O comentário do Dalai Lama foi entendido como “de que vale renascer uma mulher feia?”, isto é, não pegou nada bem.
Porém, Sua Santidade, na perspectiva budista, por uma série de razões, não estava sendo particularmente machista com esse comentário. Ele disse para o repórter, imediatamente, “ora, assim como você, que é um homem bonito”. A beleza é valorizada independentemente do machismo. Não há muitos apresentadores de TV, digamos assim, difíceis de se olhar — a maioria deles é bonito, no máximo, não são de todo feios. As pessoas valorizam a beleza — é uma coisa boa ser belo: as pessoas prestam atenção em você, querem olhar para você. Isto é, beleza aqui acaba exatamente definido como “estar de acordo com as expectativas do mundo”.
É certo que a beleza é valorizada particularmente na mulher, mas ela é valorizada de forma geral em tudo.
Por ignorância das pessoas imaturas (a grande maioria), ou simplesmente por seus hábitos e características, uma pessoa bonita tem mais chance de influenciar e beneficiar os outros. Mais chance não significa que isso sempre será assim, mas significa que há uma facilidade. Em outras palavras, ser bonito é surgir perante os seres como alguém que é bom de olhar ou estar perto; e isso é “bom”, porque cria uma série de facilidades.
Não é inerentemente bom, mas é relativamente bom. Toda pessoa saudável busca se cuidar para ser o mais bonito possível para os outros. E a maioria dos atributos de beleza, exceto alguns exageros mais recentes, está vinculada a vitalidade e saúde. E embora seja fato de que o olhar masculino prende as mulheres (e os homens) em expectativas desnecessárias, isso em nada implica que beleza não tenha valor, e cada um de nós sabe disso. Ser feio não é o fim do mundo, mas é melhor, em boa parte das circunstâncias, ser bonito. Não existe nada de errado em reconhecer isso.
Se você não é superficial e não julga as pessoas por sua aparência, melhor para você—por outro lado, é pouco realista e até um tanto controlador de sua parte tentar exigir isso do resto do mundo.
Beleza física é como tantas outras coisas temporárias que são frutos de bom carma — porque são boas circunstâncias –, tais como conhecimento intelectual, prosperidade financeira, saúde, vigor e longevidade. Há outras características que são circunstâncias boas bem mais circunstanciais, e que são semelhantes a estar no lugar certo no momento certo. Por exemplo, o bom mérito de sobreviver a um acidente porque se perdeu o horário de uma viagem, ou sofrer um ataque cardíaco na presença de um médico qualificado, e não sozinho em casa e sem assistência.
E o mesmo ocorre com os carmas ruins. Há coisas que são ruins de forma mais geral, como ter a cognição embotada, ou a saúde frágil. E há coisas que são ruins por circunstância, como estar no banco justo na hora do assalto.
Algumas pessoas ficam chocadas se ouvem que é carma ruim nascer homossexual ou mulher. Mas elas ficam chocadas porque elas não entendem o termo “carma”. Carma não é uma coisa da qual você tem culpa, ou uma punição, ou destino — embora o uso corrente do termo passe por aí, a visão budista é muito diferente disso. Essas mesmas pessoas indignadas com esse “julgamento”, listarão muitas das dificuldades que homossexuais e mulheres de fato encontram, e quase sempre encontraram na história, com raras exceções.
O fato de a pessoa nascer em circunstâncias em que ela tem mais dificuldades: isso é o mau carma dela. Evidentemente, se as condições mudam, nascer homem, branco e heterossexual também pode potencialmente vir a ser mau carma. O carma (o termo técnico seria inclusive vipaka, o resultado de uma ação, já que carma é apenas a ação anterior que produziu aquela experiência de infelicidade) será ruim não devido a uma descrição inerente de uma categoria de coisas, mas à experiência que aquilo produz na pessoa ou grupo de pessoas, onde ela está. Isto é, inserida no mundo como ele é, com todos os seus defeitos.
Podemos e devemos diminuir o sofrimento de todas as formas possíveis, até mesmo transformando as condições externas. Mas o primeiro passo é reconhecer os padrões que existem. E o jeito mais amplo de evitar preconceitos e vieses não é lutar um por um em termos sociais, mas prover um exemplo ao se livrar, pessoalmente, de todos os preconceitos e vieses pela raiz. Que aliás, é o objetivo primário do budismo.
Embora no léxico corrente ter “carma ruim” como que aparentemente rebaixe as pessoas — acima de tudo porque vivemos numa cultura de “vitoriosos” — não deveria haver julgamento de valor algum em ter carma, ou sofrer. Só o que faltava é agora condenar a pessoa porque ela está numa circunstância em que sofre. Isto é equivalente, no caso de ser mulher ou homossexual, ao fato de existir discriminação se tornar ele próprio um dos motivos para discriminação! Embora isso aconteça, as pessoas que pensam dessa forma não entendem carma, e não entendem basicamente qualquer coisa.
Carma ruim é exatamente nossa experiência de inconveniência, sofrimento ou rebaixamento. Como diz o comediante Louis C. K., se um homem branco viajasse para o passado, ele talvez encontrasse muita gente acenando feliz para ele, mas um homem negro poderia encontrar alguns problemas bastante graves se voltasse apenas 150 anos atrás. (E isso sem querer diminuir os problemas que encontra hoje, ou encontraria também 50 anos atrás!)
Isso é certo? Isso é justo? O Buda não fez as coisas, ele não é um criador. O budismo não desenhou os fatos do mundo — isso os seres fizeram com seus hábitos ignorantes. Essa é uma diferença essencial do budismo com relação a quase todas as outras religiões — que passam por uma questão chamada “problema do mal”, isto é, como um criador perfeitamente benévolo criaria a possibilidade do mal? Se a pessoa mistura criador, plano divino, destino e carma, então é óbvio que condições ruins se tornam uma punição, e não estar de “acordo” com os planos do criador, e assim por diante. Mas isso não é budismo: essas são as crenças de outras tradições. Coisas que, como budistas, com o máximo respeito, temos todo direito de considerar, particularmente interiormente e em cunho pessoal, estapafúrdias.
O budismo apenas reconhece o que está aí e tenta não se enganar. Como no caso da beleza: tanto a beleza não é um valor absoluto e inerente, como ela é, no âmbito relativo — que é feito desses hábitos ignorantes — , algo geralmente bom. Não adianta tentar mudar a realidade por decreto. Dizer que o belo é igual ao feio, ou dizer que nossos valores de belo tem que mudar, podem até ser coisas boas de se dizer: mas discurso apenas não muda os hábitos das pessoas.
Seria o mesmo que dizer que homens brancos não têm privilégio, e achar que com isso se diminui o privilégio dos homens brancos! Se você está surpreso com isso, é basicamente o discurso da imprensa de direita nos Estados Unidos, em pleno 2016 e pelos últimos 30 anos. É uma forma de ver o mundo amplamente divulgada, pelo menos por lá.
Como nós mesmos reconhecemos padrões arbitrários em nossa operação no mundo, que tal começar por onde é mais fácil e possível, por nossa própria mente? Não que a pessoa deva fechar a matraca e não fazer o discurso de que essas coisas são injustas: apenas que não se deve esperar mudança — particularmente mudanças duradouras — sem treinamento da mente. Sem o exemplo de pessoas efetivamente livres de preconceitos, que no budismo, ora, chamamos de “budas”. Não se manifestam budas por decreto, ou apenas por sua vontade de que as coisas mudem.
A graça da piada de Louis C. K. é exatamente o fato de que nossa situação é extremamente arbitrária. Não há tanta diferença entre se indignar com o fato de que uma vez homens escravizaram homens (e mulheres), ou com o fato de que escravidão era uma realidade. Reconhecer o privilégio circunstancial (necessariamente circunstancial, embora quase generalizado na história) do homem branco é efetivamente reconhecer a arbitrariedadedisso, e isso é liberador. Reconhecer a existência de algo não é automaticamente corroborar aquilo como válido, muito pelo contrário — e, de fato, o primeiro passo para mudar algo é justamente reconhecer como é.
Então a afirmação do Dalai Lama precisa ser entendida com o senso de humor que lhe é próprio. Ora, não são vocês mesmos (enquanto sociedade, enquanto mídia, enquanto gente que vê TV e assiste TV) que dizem que mulheres feias não têm valor? Então já que vou vir mulher, e mulheres são julgadas por sua beleza, melhor que seja nas melhores condições possíveis! Além disso, é engraçado um senhor idoso e careca, que por acaso é monge, e que por acaso é o Dalai Lama, dizer que quer ser uma moça bonita. E isso é engraçado porque há um contraste, e não porque exista qualquer valor inerente em ser velho, jovem, homem, mulher, careca ou não, monge ou não. Rimos desse choque comparativo porque reconhecemos que nossa mente está presa a padrões — como achar totalmente natural uma pessoa viajando no tempo e conversando numa boa com todo mundo, porque visualizamos essa pessoa como homem e branco, e não como alguém que vai ser imediatamente colocado em grilhões e vendido em praça pública. Quando vemos que o que achamos natural não é bem assim, ficamos chocados com nossa própria estultícia, e essa liberação de hábitos nos faz rir.
Não que não haja um ultraje. Rimos porque é ultrajante. O que é ultrajante? O quanto somos presas de hábitos que desconhecemos, e de crenças desavisadas que se implantaram como que vírus em nossa mente. E rimos porque vemos que mesmo essas estruturas terríveis não são efetivamente sólidas, e que as coisas mudam.
O mesmo se pode dizer do fenômeno do “feministo”, ou da pessoa “pós-racista”, que supostamente “não vê cor”. Estas são pessoas que tratam o problema dos outros como uma forma de autopromoção. Elas reificam uma visão de situação resolvida, ou aderem à problemática, mas apenas para não serem excluídas do discurso, ainda que não efetivamente entendam realmente ou participem organicamente. Ser feminista e contra o racismo passa pelo reconhecimento que todos nós carregamos estes preconceitos como hábitos arraigados, mas particularmente os privilegiados por essas visões, isto é, aqueles que não são alvos diretos delas.
E de fato, quem está bem ciente desse processo — bem ciente ao ponto do discurso estar mais na ponta da língua do que a efetiva transformação de hábitos — , pode ficar indignado com acharmos graça de uma piada como a do Louis C. K. Mas isso não quer dizer que essa pessoa esteja livre de hábitos errôneos de todo tipo. Todos nós somos presas de hábitos, inclusive os ativistas. E isso não é uma falsa equivalência — evidentemente que é melhor estar atento aos problemas do mundo, mesmo que isso gere excessos ocasionais!
O comentário do Dalai Lama passa muito mais por aquela esfera de compreensão do que por uma ideia de condicionar o valor da mulher à sua beleza. De fato, ele com seu comentário aponta que isso acontece. O Dalai Lama não renasce porque ele gosta ou prefere, ou para se dar bem: a definição do renascimento de um bodisatva é renascer na forma que pode trazer mais benefício aos seres!
O problema cultural que surgiu com essa afirmação é parecido com você pegar o guarda-chuva e seu cônjuge dizer “não venha inventar de fazer chover hoje!” É uma brincadeira baseada no fato de que a pessoa não se deu conta de que poderia chover, e então o outro, com seu movimento de precaução, a lembra que esta é uma realidade bem possível — e o mensageiro se torna o alvo! Foi ele que nos “trouxe” a chuva.
Como as pessoas não conhecem os conceitos de carma e renascimento — e qual é a motivação de Sua Santidade para renascer — , algumas assumiram que o Dalai Lama estava fazendo um comentário sobre o valor inerente de uma mulher (ou pessoa) bonita. Mas a tendência de confundir a mensagem com o mensageiro é muito forte.
Porém, sem dúvida concordo que da mesma forma que o ocidental não consegue ler bem a implicação de carma e renascimento, Sua Santidade não conseguiu ler bem o milieu da sociedade estadunidense. A tentativa de piada dele se perdeu na discussão muito presente sobre não vincular beleza com a mulher (porque isso reifica padrões machistas). É fato que a guerra cultural foi vencida, e hoje é absolutamente inadmissível participar do discurso público sem entender as implicações possíveis do que se diz no contexto dessa vitória.
…
E não só Sua Santidade planeja retornar mulher. Dzongsar Khyentse Rinpoche já disse que renascerá como a primeira presidente estadunidense negra. E republicana, para ela poder ser um pouco “ditatorial”! São muitos níveis de piada aqui, fica quase um koan.
Considerando que a maioria esmagadora dos praticantes em centros de darma é mulher, e que muitas dentre elas repetem o voto de Arya Tara de se iluminar em corpo de mulher, enquanto que os homens na maioria não estão nem aí se virão mulher ou homem, e alguns já fizeram votos de renascer mulher — ao que parece em breve não haverá mais homens no budismo! E nenhum problema nisso.
…
Agora, fora questões do escopo de circunstâncias institucionais — como o fato de que os mosteiros femininos ganham bem menos doações, e recebem bem menos educação, e não há colações de títulos eruditos para mulheres, ou ordenação monástica completa no budismo tibetano — os caminhos mahayana e hinayana em sua maior parte igualizam homem e mulher. Apenas em alguns raros casos surgem algumas perspectivas machistas, mas que de forma geral podem ser contextualizadas como influências culturais e adaptadas sem problema.
Não obstante, no caminho vajrayana, particularmente fora do caminho monástico, considera-se que a mulher, embora encontre mais dificuldades para começar a praticar (também por questões sociais próprias), é mais apta a obter realizações.
Guru Rinpoche disse que o aspecto feminino da bodicita é mais poderoso. A bodicita é a intenção de se iluminar para benefício dos outros, e é um aspecto crucial da prática mahayana e vajrayana.
Além disso, um dos votos raiz do vajrayana é respeitar as mulheres, porque elas são corporificações da sabedoria. Não há um voto equivalente de “respeitar os homens”. Se pode haver algum tipo de desigualdade sutilmente machista nisso — e pode — isso deve ser compensado com o fato de que efetivamente temos o exemplo das grandes praticantes do passado.
Yeshe Tsogyal, uma princesa de uma região do Tibete, foi entregue como oferenda a Guru Rinpoche pelo Rei Trisong Deutsen. Até aqui parece o machismo usual, e se a pessoa para o exame dessa relação por aqui, ela perde todo o contexto. Posteriormente, por exemplo, Guru Rinpoche profetizou que ela encontraria um consorte (um companheiro para praticar meditação), e ela comprou esta pessoa, Arya Sale, de um feitor de escravos. É assim o samsara: as pessoas objetificam umas às outras.
E até para liberar o ser da escravidão, ela precisou fazer um milagre, pelo qual lhe pagaram em ouro. Porque ela não podia imediatamente fazer o milagre de libertar Arya Sale, sem precisar pagar o feitor, são questões de causas e condições. As soluções muitas vezes não são diretas.
No entanto, a relação entre Guru Rinpoche e Yeshe Tsogyal — e entre Tsogyal e Arya Sale — não se resumiu a como eles foram “apresentados”. Ambas as circunstâncias foram acima de parcerias matrimoniais ou sexuais, relações de aluno-professor. E Yeshe Tsogyal é central para toda a linhagem tibetana, já que ela era o equivalente de Ananda para o Buda. Ananda e Yeshe Tsogyal tinham o que é chamado de “memória perfeita”, eles lembravam cada uma das vírgulas proferidas por seus professores, e participaram do posterior processo de registro textual.
Yeshe Tsogyal não é em nenhum átomo inferior ao Buda ou a Guru Rinpoche. Ela recebeu ensinamentos, praticou austeridades, e atingiu a iluminação completa. Ela fez o voto de renascer por todos os lados para trazer beneficio, em bilhões de emanações.
Uma dessas emanações foi Matchig Labdron. Matchig difundiu no Tibete uma forma de prática de Prajnaparamita chamada Chod, ou “cortar completamente” — no caso, o apego aos agregados e a fixação dualista e conceitual. Estas são práticas feitas em lugares assustadores, onde o praticante visualiza seu próprio corpo como um cadáver, o corta em pedaços e oferece a seres que causam obstáculos (pode-se dizer, “demônios”). No sentido mais sutil, oferecemos nossas neuroses para serem consumidas pela sabedoria, num processo que parece assustador e doloroso à princípio, mas que se mostra um ato de generosidade e fonte de regozijo.
Se Yeshe Tsogyal era o exemplo da aluna perfeita, a própria corporificação de “Yeshe” — sabedoria inata — a mulher Matchig exemplificava o destemor absoluto. Embora outras tradições no mundo representem mulheres sábias, e particularmente a grande compaixão das mulheres, não são muitas as em que mulheres representam o destemor.
Pulamos mais alguns séculos e temos Dawa Drolma, a mãe de Chagdud Rinpoche. Ela foi dada por morta, ainda bastante jovem, mas retornou à vida após alguns dias — relatando todo tipo de experiência nos seis reinos, inclusive revelando coisas como onde estava o dinheiro enterrado pelo tio morto de fulano, e assim por diante. O povo desenvolveu devoção por ela, e ela começou a dar ensinamentos. Estes foram registrados, e há um livro chamado Delog, traduzido para o inglês com as experiências visionárias dessa lama.
Claro, entre Matchig Labdron e Dawa Drolma existiram incontáveis mestras budistas. De fato o machismo afetou muito o registro, porque nem sempre elas, como essas duas, sobreviveram em texto — nem sempre os poucos registros que chegaram a existir foram tão bem preservados pelas instituições de ensino tradicionais.
Mas a figura da mulher realizada nunca se ausentou do imaginário tibetano, e se damos valor à instituição “falocêntrica”, isso também diz respeito ao fato de que assumimos certos aspectos institucionais no budismo como mais relevantes. Poder e influência acadêmica, econômica e política, por exemplo. E não necessariamente precisamos valorar essas atividades tradicionalmente vinculadas à visão machista como superiores.
Alguém já disse que querer igualdade com os homens é muito pouco!
Matchig Labdron, por exemplo, não surgiu como uma figura institucional — posteriormente, com o passar dos séculos, seus ensinamentos foram incorporados a instituições. Mas quando ela mesma ensinou, ela ensinou como grande parte dos maiores mestres: em lugares indeterminados, como errantes, fora do escopo das redes de intrigas e favorecimentos encontradas nos grandes centros focalizadores de ensino, política e dinheiro.
Em grande parte nossa adoração por prédios imponentes, graus acadêmicos, lamas vestidos em brocados em tronos altos não passa de puro materialismo espiritual. E não é como se o budismo não tenha milhares de exemplos de seres realizados que não participam dos jogos de aparência da sociedade!
Na religião grassroots mesmo, dali o feminino nunca se ausentou, com efetivo poder. E não se está dizendo que conquistas importantes como a ordenação monástica completa retornar ao budismo tibetano, bem como a colação de graus acadêmicos, não sejam necessárias. Apenas é preciso evitar a perspectiva de jogar o jogo dos ratos, com o desejo de buscar a igualdade com o que não necessariamente é o melhor.
…
Aproximando do presente, temos a figuras de grandes dakinis, como Jetsun Kusho. De família nobre no Tibete, com a invasão ela viveu primeiro na Índia e depois no Canadá. Consta que, no Tibete, eles tinham tantos criados — era uma família tão abastada — que não sabiam nem o nome de todas as pessoas que trabalhavam para eles. Porém, no exílio perderam tudo, e então seu primeiro trabalho foi numa fazenda aonde conduziam o gado para o abate. Embora estivessem presos em tal situação degradada, sempre rezavam muito pelos animais. Foram logo demitidos, porque os outros trabalhadores começaram a desenvolver compaixão e também passar mal com que estavam fazendo.
Então ela trabalhou como empregada doméstica por alguns anos, até que um afilhado literalmente ganhou na loteria. Ela já esteve no Brasil, e é uma das mais elevadas lamas tibetanas da antiga geração ainda em atividade.
Com relação às professoras ocidentais, são numerosas demais para contar todas as histórias. Fica a indicação do livro Dakini Power, que conta as histórias de 12 mulheres que líderes budistas na atualidade — mesmo as asiáticas nessa lista atuam também no ocidente. Elas são Jetsun Khandro Rinpoche, Dagmola Sakya, Jetsun Tenzin Palmo, Pema Chödrön, Khandro Tsering Chödron, Thubten Chodron, Karma Lekshe Tsomo, Chagdud Khadro, Sangye Khandro, Roshi Joan Halifax, Lama Tsultrim Allione e Elizabeth Mattis-Namgyel.
Embora o budismo tenha ao longo de sua história muitas vezes corroborado visões machistas — e seguir um caminho espiritual na Ásia sempre tenha sido mais difícil para as mulheres do que para os homens — há também motivos para regozijar com a presença do feminino em forma exaltada, particularmente no budismo tibetano.
De forma alguma tentando isentar a estrutura institucional do budismo, é preciso contextualizar que uma cultura machista necessariamente colore de machismo todas as atividades que ocorrem nela.
A maioria de nós que vê valor no darma gostaria que ele fosse uma força sempre revolucionária, sempre em contraponto com as injustiças do mundo.
No entanto, a característica revolucionária do budismo não é propriamente temporal. Particularmente em termos temporais o budismo até eventualmente se engaja na transformação das estruturas — por exemplo, um mestre pode diminuir a caça e o abate de animais em toda sua região de influência, e sua presença benévola pode até diminuir o roubo, a violência ou o tabagismo — mas de modo geral as circunstâncias políticas e sociais são produtos de carma, e um praticante que se engaje prioritariamente nos galhos perde, por assim dizer, as raízes. O foco, portanto, é eliminar as aflições mentais que produzem os hábitos que produzem todos os sofrimentos, e em primeiro lugar em nossa mente — e então com isso o mundo se transforma.
Mas este é um processo difícil de medir no contexto do tempo histórico, e cujos heróis, em sua maioria, são anônimos.
Como Shantideva disse no seu Caminho de Bodisatva, vale mais usar uma sandália do que tentar cobrir o mundo de couro.
Então é esse o motivo pelo qual o budismo nem sempre se engaja explicitamente em transformação social, e porque muitas vezes pareceu conivente com o que parecem, ou foram de fato, injustiças.
Independentemente disso, alguns aspectos, no entanto, seguem causando perplexidade na mente moderna — e isso algumas vezes ocorre por pura falta de conhecimento de como o budismo vê o mundo, que é de fato radicalmente diferente de qualquer outra forma de religião ou sistema de pensamento.
Por exemplo, recentemente Sua Santidade o Dalai Lama reafirmou que provavelmente renascerá como uma mulher. Ele já havia dito isso outras vezes, mas nessa última ocorrência ele brincou com o repórter americano que seria “uma mulher bonita, é claro”. Isso causou muita celeuma, já que o discurso feminista — e o bom senso — deixam bem claro que o valor de uma mulher não está em sua beleza. Além disso, é bastante evidente, e uma situação digna de pesar, que nossa sociedade — ainda mais extremamente que no passado e em outras sociedades — de fato muitas vezes objetifique as mulheres como meros objetos decorativos para o olhar masculino.
O comentário do Dalai Lama foi entendido como “de que vale renascer uma mulher feia?”, isto é, não pegou nada bem.
Porém, Sua Santidade, na perspectiva budista, por uma série de razões, não estava sendo particularmente machista com esse comentário. Ele disse para o repórter, imediatamente, “ora, assim como você, que é um homem bonito”. A beleza é valorizada independentemente do machismo. Não há muitos apresentadores de TV, digamos assim, difíceis de se olhar — a maioria deles é bonito, no máximo, não são de todo feios. As pessoas valorizam a beleza — é uma coisa boa ser belo: as pessoas prestam atenção em você, querem olhar para você. Isto é, beleza aqui acaba exatamente definido como “estar de acordo com as expectativas do mundo”.
É certo que a beleza é valorizada particularmente na mulher, mas ela é valorizada de forma geral em tudo.
Por ignorância das pessoas imaturas (a grande maioria), ou simplesmente por seus hábitos e características, uma pessoa bonita tem mais chance de influenciar e beneficiar os outros. Mais chance não significa que isso sempre será assim, mas significa que há uma facilidade. Em outras palavras, ser bonito é surgir perante os seres como alguém que é bom de olhar ou estar perto; e isso é “bom”, porque cria uma série de facilidades.
Não é inerentemente bom, mas é relativamente bom. Toda pessoa saudável busca se cuidar para ser o mais bonito possível para os outros. E a maioria dos atributos de beleza, exceto alguns exageros mais recentes, está vinculada a vitalidade e saúde. E embora seja fato de que o olhar masculino prende as mulheres (e os homens) em expectativas desnecessárias, isso em nada implica que beleza não tenha valor, e cada um de nós sabe disso. Ser feio não é o fim do mundo, mas é melhor, em boa parte das circunstâncias, ser bonito. Não existe nada de errado em reconhecer isso.
Se você não é superficial e não julga as pessoas por sua aparência, melhor para você—por outro lado, é pouco realista e até um tanto controlador de sua parte tentar exigir isso do resto do mundo.
Beleza física é como tantas outras coisas temporárias que são frutos de bom carma — porque são boas circunstâncias –, tais como conhecimento intelectual, prosperidade financeira, saúde, vigor e longevidade. Há outras características que são circunstâncias boas bem mais circunstanciais, e que são semelhantes a estar no lugar certo no momento certo. Por exemplo, o bom mérito de sobreviver a um acidente porque se perdeu o horário de uma viagem, ou sofrer um ataque cardíaco na presença de um médico qualificado, e não sozinho em casa e sem assistência.
E o mesmo ocorre com os carmas ruins. Há coisas que são ruins de forma mais geral, como ter a cognição embotada, ou a saúde frágil. E há coisas que são ruins por circunstância, como estar no banco justo na hora do assalto.
Algumas pessoas ficam chocadas se ouvem que é carma ruim nascer homossexual ou mulher. Mas elas ficam chocadas porque elas não entendem o termo “carma”. Carma não é uma coisa da qual você tem culpa, ou uma punição, ou destino — embora o uso corrente do termo passe por aí, a visão budista é muito diferente disso. Essas mesmas pessoas indignadas com esse “julgamento”, listarão muitas das dificuldades que homossexuais e mulheres de fato encontram, e quase sempre encontraram na história, com raras exceções.
O fato de a pessoa nascer em circunstâncias em que ela tem mais dificuldades: isso é o mau carma dela. Evidentemente, se as condições mudam, nascer homem, branco e heterossexual também pode potencialmente vir a ser mau carma. O carma (o termo técnico seria inclusive vipaka, o resultado de uma ação, já que carma é apenas a ação anterior que produziu aquela experiência de infelicidade) será ruim não devido a uma descrição inerente de uma categoria de coisas, mas à experiência que aquilo produz na pessoa ou grupo de pessoas, onde ela está. Isto é, inserida no mundo como ele é, com todos os seus defeitos.
Podemos e devemos diminuir o sofrimento de todas as formas possíveis, até mesmo transformando as condições externas. Mas o primeiro passo é reconhecer os padrões que existem. E o jeito mais amplo de evitar preconceitos e vieses não é lutar um por um em termos sociais, mas prover um exemplo ao se livrar, pessoalmente, de todos os preconceitos e vieses pela raiz. Que aliás, é o objetivo primário do budismo.
Embora no léxico corrente ter “carma ruim” como que aparentemente rebaixe as pessoas — acima de tudo porque vivemos numa cultura de “vitoriosos” — não deveria haver julgamento de valor algum em ter carma, ou sofrer. Só o que faltava é agora condenar a pessoa porque ela está numa circunstância em que sofre. Isto é equivalente, no caso de ser mulher ou homossexual, ao fato de existir discriminação se tornar ele próprio um dos motivos para discriminação! Embora isso aconteça, as pessoas que pensam dessa forma não entendem carma, e não entendem basicamente qualquer coisa.
Carma ruim é exatamente nossa experiência de inconveniência, sofrimento ou rebaixamento. Como diz o comediante Louis C. K., se um homem branco viajasse para o passado, ele talvez encontrasse muita gente acenando feliz para ele, mas um homem negro poderia encontrar alguns problemas bastante graves se voltasse apenas 150 anos atrás. (E isso sem querer diminuir os problemas que encontra hoje, ou encontraria também 50 anos atrás!)
Isso é certo? Isso é justo? O Buda não fez as coisas, ele não é um criador. O budismo não desenhou os fatos do mundo — isso os seres fizeram com seus hábitos ignorantes. Essa é uma diferença essencial do budismo com relação a quase todas as outras religiões — que passam por uma questão chamada “problema do mal”, isto é, como um criador perfeitamente benévolo criaria a possibilidade do mal? Se a pessoa mistura criador, plano divino, destino e carma, então é óbvio que condições ruins se tornam uma punição, e não estar de “acordo” com os planos do criador, e assim por diante. Mas isso não é budismo: essas são as crenças de outras tradições. Coisas que, como budistas, com o máximo respeito, temos todo direito de considerar, particularmente interiormente e em cunho pessoal, estapafúrdias.
O budismo apenas reconhece o que está aí e tenta não se enganar. Como no caso da beleza: tanto a beleza não é um valor absoluto e inerente, como ela é, no âmbito relativo — que é feito desses hábitos ignorantes — , algo geralmente bom. Não adianta tentar mudar a realidade por decreto. Dizer que o belo é igual ao feio, ou dizer que nossos valores de belo tem que mudar, podem até ser coisas boas de se dizer: mas discurso apenas não muda os hábitos das pessoas.
Seria o mesmo que dizer que homens brancos não têm privilégio, e achar que com isso se diminui o privilégio dos homens brancos! Se você está surpreso com isso, é basicamente o discurso da imprensa de direita nos Estados Unidos, em pleno 2016 e pelos últimos 30 anos. É uma forma de ver o mundo amplamente divulgada, pelo menos por lá.
Como nós mesmos reconhecemos padrões arbitrários em nossa operação no mundo, que tal começar por onde é mais fácil e possível, por nossa própria mente? Não que a pessoa deva fechar a matraca e não fazer o discurso de que essas coisas são injustas: apenas que não se deve esperar mudança — particularmente mudanças duradouras — sem treinamento da mente. Sem o exemplo de pessoas efetivamente livres de preconceitos, que no budismo, ora, chamamos de “budas”. Não se manifestam budas por decreto, ou apenas por sua vontade de que as coisas mudem.
A graça da piada de Louis C. K. é exatamente o fato de que nossa situação é extremamente arbitrária. Não há tanta diferença entre se indignar com o fato de que uma vez homens escravizaram homens (e mulheres), ou com o fato de que escravidão era uma realidade. Reconhecer o privilégio circunstancial (necessariamente circunstancial, embora quase generalizado na história) do homem branco é efetivamente reconhecer a arbitrariedadedisso, e isso é liberador. Reconhecer a existência de algo não é automaticamente corroborar aquilo como válido, muito pelo contrário — e, de fato, o primeiro passo para mudar algo é justamente reconhecer como é.
Então a afirmação do Dalai Lama precisa ser entendida com o senso de humor que lhe é próprio. Ora, não são vocês mesmos (enquanto sociedade, enquanto mídia, enquanto gente que vê TV e assiste TV) que dizem que mulheres feias não têm valor? Então já que vou vir mulher, e mulheres são julgadas por sua beleza, melhor que seja nas melhores condições possíveis! Além disso, é engraçado um senhor idoso e careca, que por acaso é monge, e que por acaso é o Dalai Lama, dizer que quer ser uma moça bonita. E isso é engraçado porque há um contraste, e não porque exista qualquer valor inerente em ser velho, jovem, homem, mulher, careca ou não, monge ou não. Rimos desse choque comparativo porque reconhecemos que nossa mente está presa a padrões — como achar totalmente natural uma pessoa viajando no tempo e conversando numa boa com todo mundo, porque visualizamos essa pessoa como homem e branco, e não como alguém que vai ser imediatamente colocado em grilhões e vendido em praça pública. Quando vemos que o que achamos natural não é bem assim, ficamos chocados com nossa própria estultícia, e essa liberação de hábitos nos faz rir.
Não que não haja um ultraje. Rimos porque é ultrajante. O que é ultrajante? O quanto somos presas de hábitos que desconhecemos, e de crenças desavisadas que se implantaram como que vírus em nossa mente. E rimos porque vemos que mesmo essas estruturas terríveis não são efetivamente sólidas, e que as coisas mudam.
O mesmo se pode dizer do fenômeno do “feministo”, ou da pessoa “pós-racista”, que supostamente “não vê cor”. Estas são pessoas que tratam o problema dos outros como uma forma de autopromoção. Elas reificam uma visão de situação resolvida, ou aderem à problemática, mas apenas para não serem excluídas do discurso, ainda que não efetivamente entendam realmente ou participem organicamente. Ser feminista e contra o racismo passa pelo reconhecimento que todos nós carregamos estes preconceitos como hábitos arraigados, mas particularmente os privilegiados por essas visões, isto é, aqueles que não são alvos diretos delas.
E de fato, quem está bem ciente desse processo — bem ciente ao ponto do discurso estar mais na ponta da língua do que a efetiva transformação de hábitos — , pode ficar indignado com acharmos graça de uma piada como a do Louis C. K. Mas isso não quer dizer que essa pessoa esteja livre de hábitos errôneos de todo tipo. Todos nós somos presas de hábitos, inclusive os ativistas. E isso não é uma falsa equivalência — evidentemente que é melhor estar atento aos problemas do mundo, mesmo que isso gere excessos ocasionais!
O comentário do Dalai Lama passa muito mais por aquela esfera de compreensão do que por uma ideia de condicionar o valor da mulher à sua beleza. De fato, ele com seu comentário aponta que isso acontece. O Dalai Lama não renasce porque ele gosta ou prefere, ou para se dar bem: a definição do renascimento de um bodisatva é renascer na forma que pode trazer mais benefício aos seres!
O problema cultural que surgiu com essa afirmação é parecido com você pegar o guarda-chuva e seu cônjuge dizer “não venha inventar de fazer chover hoje!” É uma brincadeira baseada no fato de que a pessoa não se deu conta de que poderia chover, e então o outro, com seu movimento de precaução, a lembra que esta é uma realidade bem possível — e o mensageiro se torna o alvo! Foi ele que nos “trouxe” a chuva.
Como as pessoas não conhecem os conceitos de carma e renascimento — e qual é a motivação de Sua Santidade para renascer — , algumas assumiram que o Dalai Lama estava fazendo um comentário sobre o valor inerente de uma mulher (ou pessoa) bonita. Mas a tendência de confundir a mensagem com o mensageiro é muito forte.
Porém, sem dúvida concordo que da mesma forma que o ocidental não consegue ler bem a implicação de carma e renascimento, Sua Santidade não conseguiu ler bem o milieu da sociedade estadunidense. A tentativa de piada dele se perdeu na discussão muito presente sobre não vincular beleza com a mulher (porque isso reifica padrões machistas). É fato que a guerra cultural foi vencida, e hoje é absolutamente inadmissível participar do discurso público sem entender as implicações possíveis do que se diz no contexto dessa vitória.
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E não só Sua Santidade planeja retornar mulher. Dzongsar Khyentse Rinpoche já disse que renascerá como a primeira presidente estadunidense negra. E republicana, para ela poder ser um pouco “ditatorial”! São muitos níveis de piada aqui, fica quase um koan.
Considerando que a maioria esmagadora dos praticantes em centros de darma é mulher, e que muitas dentre elas repetem o voto de Arya Tara de se iluminar em corpo de mulher, enquanto que os homens na maioria não estão nem aí se virão mulher ou homem, e alguns já fizeram votos de renascer mulher — ao que parece em breve não haverá mais homens no budismo! E nenhum problema nisso.
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Agora, fora questões do escopo de circunstâncias institucionais — como o fato de que os mosteiros femininos ganham bem menos doações, e recebem bem menos educação, e não há colações de títulos eruditos para mulheres, ou ordenação monástica completa no budismo tibetano — os caminhos mahayana e hinayana em sua maior parte igualizam homem e mulher. Apenas em alguns raros casos surgem algumas perspectivas machistas, mas que de forma geral podem ser contextualizadas como influências culturais e adaptadas sem problema.
Não obstante, no caminho vajrayana, particularmente fora do caminho monástico, considera-se que a mulher, embora encontre mais dificuldades para começar a praticar (também por questões sociais próprias), é mais apta a obter realizações.
Guru Rinpoche disse que o aspecto feminino da bodicita é mais poderoso. A bodicita é a intenção de se iluminar para benefício dos outros, e é um aspecto crucial da prática mahayana e vajrayana.
Além disso, um dos votos raiz do vajrayana é respeitar as mulheres, porque elas são corporificações da sabedoria. Não há um voto equivalente de “respeitar os homens”. Se pode haver algum tipo de desigualdade sutilmente machista nisso — e pode — isso deve ser compensado com o fato de que efetivamente temos o exemplo das grandes praticantes do passado.
Yeshe Tsogyal, uma princesa de uma região do Tibete, foi entregue como oferenda a Guru Rinpoche pelo Rei Trisong Deutsen. Até aqui parece o machismo usual, e se a pessoa para o exame dessa relação por aqui, ela perde todo o contexto. Posteriormente, por exemplo, Guru Rinpoche profetizou que ela encontraria um consorte (um companheiro para praticar meditação), e ela comprou esta pessoa, Arya Sale, de um feitor de escravos. É assim o samsara: as pessoas objetificam umas às outras.
E até para liberar o ser da escravidão, ela precisou fazer um milagre, pelo qual lhe pagaram em ouro. Porque ela não podia imediatamente fazer o milagre de libertar Arya Sale, sem precisar pagar o feitor, são questões de causas e condições. As soluções muitas vezes não são diretas.
No entanto, a relação entre Guru Rinpoche e Yeshe Tsogyal — e entre Tsogyal e Arya Sale — não se resumiu a como eles foram “apresentados”. Ambas as circunstâncias foram acima de parcerias matrimoniais ou sexuais, relações de aluno-professor. E Yeshe Tsogyal é central para toda a linhagem tibetana, já que ela era o equivalente de Ananda para o Buda. Ananda e Yeshe Tsogyal tinham o que é chamado de “memória perfeita”, eles lembravam cada uma das vírgulas proferidas por seus professores, e participaram do posterior processo de registro textual.
Yeshe Tsogyal não é em nenhum átomo inferior ao Buda ou a Guru Rinpoche. Ela recebeu ensinamentos, praticou austeridades, e atingiu a iluminação completa. Ela fez o voto de renascer por todos os lados para trazer beneficio, em bilhões de emanações.
Uma dessas emanações foi Matchig Labdron. Matchig difundiu no Tibete uma forma de prática de Prajnaparamita chamada Chod, ou “cortar completamente” — no caso, o apego aos agregados e a fixação dualista e conceitual. Estas são práticas feitas em lugares assustadores, onde o praticante visualiza seu próprio corpo como um cadáver, o corta em pedaços e oferece a seres que causam obstáculos (pode-se dizer, “demônios”). No sentido mais sutil, oferecemos nossas neuroses para serem consumidas pela sabedoria, num processo que parece assustador e doloroso à princípio, mas que se mostra um ato de generosidade e fonte de regozijo.
Se Yeshe Tsogyal era o exemplo da aluna perfeita, a própria corporificação de “Yeshe” — sabedoria inata — a mulher Matchig exemplificava o destemor absoluto. Embora outras tradições no mundo representem mulheres sábias, e particularmente a grande compaixão das mulheres, não são muitas as em que mulheres representam o destemor.
Pulamos mais alguns séculos e temos Dawa Drolma, a mãe de Chagdud Rinpoche. Ela foi dada por morta, ainda bastante jovem, mas retornou à vida após alguns dias — relatando todo tipo de experiência nos seis reinos, inclusive revelando coisas como onde estava o dinheiro enterrado pelo tio morto de fulano, e assim por diante. O povo desenvolveu devoção por ela, e ela começou a dar ensinamentos. Estes foram registrados, e há um livro chamado Delog, traduzido para o inglês com as experiências visionárias dessa lama.
Claro, entre Matchig Labdron e Dawa Drolma existiram incontáveis mestras budistas. De fato o machismo afetou muito o registro, porque nem sempre elas, como essas duas, sobreviveram em texto — nem sempre os poucos registros que chegaram a existir foram tão bem preservados pelas instituições de ensino tradicionais.
Mas a figura da mulher realizada nunca se ausentou do imaginário tibetano, e se damos valor à instituição “falocêntrica”, isso também diz respeito ao fato de que assumimos certos aspectos institucionais no budismo como mais relevantes. Poder e influência acadêmica, econômica e política, por exemplo. E não necessariamente precisamos valorar essas atividades tradicionalmente vinculadas à visão machista como superiores.
Alguém já disse que querer igualdade com os homens é muito pouco!
Matchig Labdron, por exemplo, não surgiu como uma figura institucional — posteriormente, com o passar dos séculos, seus ensinamentos foram incorporados a instituições. Mas quando ela mesma ensinou, ela ensinou como grande parte dos maiores mestres: em lugares indeterminados, como errantes, fora do escopo das redes de intrigas e favorecimentos encontradas nos grandes centros focalizadores de ensino, política e dinheiro.
Em grande parte nossa adoração por prédios imponentes, graus acadêmicos, lamas vestidos em brocados em tronos altos não passa de puro materialismo espiritual. E não é como se o budismo não tenha milhares de exemplos de seres realizados que não participam dos jogos de aparência da sociedade!
Na religião grassroots mesmo, dali o feminino nunca se ausentou, com efetivo poder. E não se está dizendo que conquistas importantes como a ordenação monástica completa retornar ao budismo tibetano, bem como a colação de graus acadêmicos, não sejam necessárias. Apenas é preciso evitar a perspectiva de jogar o jogo dos ratos, com o desejo de buscar a igualdade com o que não necessariamente é o melhor.
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Aproximando do presente, temos a figuras de grandes dakinis, como Jetsun Kusho. De família nobre no Tibete, com a invasão ela viveu primeiro na Índia e depois no Canadá. Consta que, no Tibete, eles tinham tantos criados — era uma família tão abastada — que não sabiam nem o nome de todas as pessoas que trabalhavam para eles. Porém, no exílio perderam tudo, e então seu primeiro trabalho foi numa fazenda aonde conduziam o gado para o abate. Embora estivessem presos em tal situação degradada, sempre rezavam muito pelos animais. Foram logo demitidos, porque os outros trabalhadores começaram a desenvolver compaixão e também passar mal com que estavam fazendo.
Então ela trabalhou como empregada doméstica por alguns anos, até que um afilhado literalmente ganhou na loteria. Ela já esteve no Brasil, e é uma das mais elevadas lamas tibetanas da antiga geração ainda em atividade.
Com relação às professoras ocidentais, são numerosas demais para contar todas as histórias. Fica a indicação do livro Dakini Power, que conta as histórias de 12 mulheres que líderes budistas na atualidade — mesmo as asiáticas nessa lista atuam também no ocidente. Elas são Jetsun Khandro Rinpoche, Dagmola Sakya, Jetsun Tenzin Palmo, Pema Chödrön, Khandro Tsering Chödron, Thubten Chodron, Karma Lekshe Tsomo, Chagdud Khadro, Sangye Khandro, Roshi Joan Halifax, Lama Tsultrim Allione e Elizabeth Mattis-Namgyel.
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