Sagrado Feminino: a mulher e a terra
Antes de tudo, gostaríamos de propor um exercício: respire fundo. Inspire pelo nariz e solte pela boca. Longa e profundamente, por pelo menos três vezes. Uma vez no presente, a leitura (ou seria a refeição?) pode realmente começar. As palavras que se seguem abordam o Sagrado Feminino e sua relação com a alimentação. Os pontos serão discutidos à luz de uma abordagem mais subjetiva, porém de forma alguma menos profunda. É nesse quadro que não serão objetos de reflexão questões que envolvem necessidades físicas e biológicas específicas do corpo da mulher, como nutrientes necessários e alimentos indicados para cada fase do ciclo menstrual.
O Sagrado Feminino, expressão tão antiga e ao mesmo tempo tão nova, pode ser resumido como a sabedoria ancestral dos mistérios do feminino, conhecimentos que todas carregamos em nosso corpo, nas hélices de nosso DNA, e em nossa alma, por trás dos véus do (declinante) patriarcado. Trata-se da conexão dos ritmos femininos com os ritmos da natureza, do ciclo menstrual em ligação com o ciclo lunar, bem como da cura da menstruação e sua relação com a cura da Terra. Logo, a mulher sagrada, cíclica e guiada pela lua, reconhece sua íntima relação com a terra e seu lugar nela.
Na esteira do surgimento de movimentos como o próprio Slow Food, assim como a busca por autoconhecimento e o despertar de nossa espiritualidade, ressurge o Sagrado Feminino. Mas por quê? Acreditamos que por estarmos vivendo um momento singular no planeta, em que nos distanciamos muito da natureza, dos ciclos da terra e de nossa ancestralidade. Vemo-nos desconectadas, sozinhas, imersas em uma engrenagem que nos foge ao controle. Assim, certas de que seguir nesta lógica destrutiva não é saída, voltamo-nos para nós mesmas e buscamos reconexão com a terra, nosso lar. Logo, ao mesmo tempo em que a alimentação saudável volta a entrar em pauta, cada vez mais mulheres, dia após dia, encontram – como que por acaso – o caminho de volta a suas raízes, as quais nada mais são do que as próprias raízes das árvores, plantas e, claro, dos alimentos que brotam da terra.
No momento em que nos voltamos para o macrocosmo, vemos uma Terra ainda tão deslumbrante, mas talvez tão agredida quanto. O ar que respiramos está poluído, a água que tomamos está suja, a terra que nos alimenta está envenenada, as árvores que nos sombreiam são derrubadas, a chuva que nos limpa não chega ou chega em excesso e o sol que nos aquece passou a nos queimar. Quando olhamos para o todo, vemos que está fragmentado.
Assim como nós, seres humanos, estamos também fragmentados e enxergamos nitidamente os reflexos disso. Estamos acima do peso. Por que comemos tanto ou tão mal? Estamos cansados. Cadê a energia vital correndo em nossos corpos? Estamos doentes. Onde foi parar nossa saúde? Estamos infelizes. A alegria mudou ou fomos nós que mudamos? O ser humano – portanto, você – começa a enfraquecer quando se fragmenta. Em outras palavras, quando esquece que o macro e o micro estão ligados. Afinal, somos todas e todos um só: a natureza.
A alimentação é uma das pontes entre os seres humanos e a terra, por isso é tão importante olharmos pra ela. Quando nos afastamos do alimento que nos nutre, que vira energia dentro de nós, afastamo-nos de nós mesmas e mesmos. É lógico, mas não tão óbvio. O alimento é a natureza, assim como a mulher é a natureza. Os dois têm o seu tempo, os seus ciclos, as suas estações, os seus momentos de morrer e renascer. Não dá maçã o ano inteiro, assim como a mulher não fica menstruada o ano inteiro. O abacaxi não combina com inverno, bem como a mulher que ovula vive seu verão interno, não o inverno.
O Sagrado Feminino e o Slow Food conectam-se de várias formas, pois ambos reverenciam a Mãe Terra, aquela que dá o alimento (a comida de verdade), aquela que gesta o alimento, aquela que ensina a respeitar o tempo da gestação, da semente crescer e virar fruto e que orienta sobre o respeito aos ciclos, ao tempo da colheita e da poda. A lua, que desde os primórdios guia as semeaduras na terra (e que hoje é uma prática especialmente valorizada pela agricultura biodinâmica), também guia as mulheres nas suas quatro fases do ciclo menstrual, em que a menstruação corresponde à lua nova, o período pré-ovulatório à crescente, a ovulação à cheia e a fase pré-menstrual à minguante.
O Sagrado Feminino é o respeito à diversidade da natureza em suas mais diversas faces. Somos cerca de mais de oito bilhões de pessoas, uma diferente da outra. Logo, cada mulher é única. O agronegócio contribuiu para a redução drástica do número de espécies cultivadas na terra. Padronizaram nossa alimentação e hoje consumimos, direta ou indiretamente, grandes quantidades de soja, milho e trigo. Ao mesmo tempo, a indústria da beleza padronizou nossos corpos. Assim, o Sagrado Feminino representa a exaltação à diversidade do que colocamos em nosso prato, bem como do corpo que habitamos.
A natureza é pura cor! A nossa despensa também deve ser assim. A natureza é pura abundância! Uma laranjeira dá quantas laranjas? Um pinheiro dá quantos pinhões? Ela não se gradeia e escolhe a quem vai dar o alimento, ao rico ou ao pobre. Ela dá, sem olhar a quem. Logo, alimento caro não é justo. Se a natureza é tão abundante, porque ainda tantos passam fome? Como filhas e filhos legítimos da Mãe Terra, todos nós temos o direito ao alimento seguro, saudável, sustentável e adequado a nossas culturas.
O Sagrado Feminino é o cuidado com o meio ambiente. É a luta pela fertilidade de nosso próprio corpo e pela fertilidade da terra, para mantê-la viva. É o entendimento de que a saída para os desafios que temos enfrentado, como as mudanças climáticas, epidemias de obesidade, doenças crônicas não transmissíveis, contaminação da terra e de nossos corpos por agrotóxicos, envolve a agroecologia, a união e a valorização dos pequenos produtores de alimentos e da cultura local.
O Sagrado Feminino é o entendimento do papel central da mulher nesta mudança, da mulher desperta e empoderada, da mulher agricultora, reconhecida e respeitada. É a prática de devolver o sangue menstrual à terra, para fertilizar o solo e cultivar as ervas medicinais, flores e alimentos. É buscar o retorno aos conhecimentos tradicionais, às Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), às ervas que nossas ancestrais usavam para curar a si e ao coletivo.O Sagrado Feminino é a valorização de nossa ancestralidade. É honrar a quem veio antes de nós. É enxergar o todo, não apenas o fragmento, como já mencionamos. Só estamos aqui porque temos um pai e uma mãe. Só levamos o alimento para casa porque alguém plantou. Logo, é honrar a quem escolheu a semente, arou a terra, adubou, plantou, regou, cuidou, colheu, lavou, transportou e vendeu. Quem levanta de madrugada para preparar a feira e quem, no cotidiano, trabalha para manter a terra viva e nossos corpos saudáveis, livres de venenos e transgênicos. É saudar as guardiãs das sementes, as mulheres agricultoras, tão fundamentais para o reconhecimento da agroecologia como prática viável e merecedora de status político e econômico.
O Sagrado Feminino é a retomada do protagonismo de nossa própria vida. A mulher passa a enxergar que, sim, apenas ela sabe o que é melhor para ela, e que pode e deve fazer o que deseja. Ninguém mais precisa dizer a ela o que vestir, o que falar, o que fazer, o que comer – e o que não comer. Perguntamo-nos: por que são as mulheres que mais sofrem com transtornos alimentares? Por que tanto problema com a comida? Comer é um ato sagrado que foi covardemente tornado profano em benefício de interesses da indústria de alimentos e da beleza. O corpo da mulher tornou-se de domínio público, ditaram as regras e o que deveria ser realizado para que ele fosse perfeito. Isso causou reflexos drásticos na relação das mulheres com seus corpos e com a comida.
Entendemos que, para uma mulher, sua relação com a alimentação diz muito sobre si mesma e sobre sua história de vida. É preciso olhar, com carinho, para isso.
O Sagrado Feminino é cura. A cura de toda dor que as mulheres carregam em si, ao longo de milênios de desrespeito ao seu feminino sacro. Essa cura passa também pelas refeições. Uma mulher que retoma a busca por si mesma inevitavelmente começa a enxergar a alimentação de outra forma, porque ela nutre o seu corpo, seu templo sagrado. Ela enxerga que o alimento cura ou adoece. Ela não acredita mais em dietas da moda, ela sabe o que seu corpo quer e precisa. Ela também reconhece o valor do alimento mais rico de todos: o leite materno. Ela sabe que, assim como ele, a natureza nos dá tudo o que precisamos para nos nutrir.
O Sagrado Feminino é o resgate das relações. Partindo do amor-próprio ao encontro com o amor universal. É o resgate do preparar o alimento passo a passo, do sentar-se à mesa com calma com as pessoas que amamos, do compartilhar o alimento nutridor, do conversar olhando nos olhos, do almoço em família aos domingos, da comensalidade. Fazendo isso, convertemos a mesa em um altar em respeito à energia do alimento que nutre, não apenas ao corpo, mas à alma. Afinal, comida é afeto e, não por acaso, muitas memórias amorosas possuem uma mesa incluída.
Por fim, queremos que este artigo contribua para um começo, de um resgate ao respeito. Primordialmente, ao respeito por nós mesmas, filhas da Mãe Terra. Precisamos entender que o jeito como valorizamos o alimento é o jeito como nos valorizamos. O modo como nos relacionamos com a comida é o modo como levamos a vida.
O Sagrado Feminino resgata a mulher que mora em cada uma de nós, que não aceita mais nada que seja de mentira – incluindo comida, que se revolta contra a indústria farmacêutica, que produz o agrotóxico que nos envenena e o anticoncepcional que nos domestica e mata. Toda agressão à natureza é uma agressão a nós. O agrotóxico que colocamos na terra também colocamos em nós, assim como o alimento ultraprocessado fere nosso corpo porque não é natural e nós somos naturais, cíclicas e sagradas.
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Para complementar, deixamos como sugestão a palestra “A Terra é uma Mulher e o meu Útero, o Universo”, ministrada pela ecofeminista e fundadora do Comida do Amanhã, Mónica Guerra da Rocha, no TEDxUNIRIO. É uma fala maravilhosa, inspiradora e emocionante, cada vez mais atual e necessária. Temos muito a aprender ouvindo umas às outras. Uns aos outros. Mulheres e homens. Natureza e seres humanos. O Sagrado Feminino e o Slow Food. Afinal, estamos todas e todos juntos nessa.
Nota: O Sagrado Feminino é um saber milenar que compreende um estilo de vida baseado na espiritualidade feminina, desenvolvida por meio da prática do autoconhecimento sobre aspectos emocionais, mentais, físicos, energéticos e espirituais da mulher, a partir da consciência dos ciclos femininos (como a menstruação e a gestação), reconhecendo-a em sua integralidade. Engloba o resgate da criatividade, intuição e sexualidade femininas, além da reconexão com a natureza e com a Deusa interior e exterior.
Recomendações de leitura:
MARTÍN, P. P. S. Manual de Introdução à Ginecologia Natural. São Paulo: Bauti Produções, 2018. 370 p.
ESTÉS, C. P. Mulheres que Correm com os Lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 628 p.
GRAY, M. Lua Vermelha: As energias criativas do ciclo menstrual como fonte de empoderamento sexual, espiritual e emocional. São Paulo: Editora Pensamento, 2017. 294 p.
* Nichole Ramos é nutricionista, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e criadora do instagram @andarilha.entre.osmundos
* Priscilla Breda Panizzon é jornalista formada pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e autora do blog Toda Mulher é Sagrada
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