A MULHER E O SUFISMO

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A mulher e o sufismo

Mesmo que neste mundo de dualidades nós podemos adotar distintas formas, em última instância não existem homens ou mulheres, senão somente o Ser. Dentro da tradição sufi, o reconhecimento desta verdade estimulou a maturidade espiritual das mulheres, de uma maneira que nem sempre foi possível no Ocidente.
Desde os primórdios do Islã, as mulheres desempenharam um importante papel no desenvolvimento do sufismo, a espiritualidade islâmica, o qual tradicionalmente se entende que começou com o profeta Maomé (ou Muhammad, que a paz esteja com ele). Maomé transmitiu uma mensagem que combinava o espírito e a matéria, a essência e a forma, e o reconhecimento do feminino e do masculino. Ainda que as manifestações culturais tenham ocultado em parte a pureza original da intenção, as palavras do Alcorão expressam a igualdade de mulheres e de homens ante os olhos de Deus.
Em um tempo em que as tribos árabes adoradoras de deusas eram ainda bastante brutais, chegando inclusive a enterrar as meninas recém-nascidas para favorecer a descendência masculina, entes novo porta-voz da tradição abraâmica tentou restabelecer o reconhecimento da Unidade do Ser. Tratou de corrigir os desequilíbrios que haviam surgido, aconselhando honrar e respeitar o feminino, assim como a graça e a harmonia da natureza.
Durante os primeiros anos da nova revelação islâmica, Khadija, a amada esposa-sacerdotisa de Maomé, jogou um papel de grande importância. Foi ela quem respaldou, fortaleceu e apoiou o Profeta, quando este foi assaltado por dúvidas e inseguranças. Esteve junto dele no meio das dificuldades e angústias extremas, e ajudou a transmitir a luz da nova fé. Fátima, a filha de Maomé e Khadija, foi a primeira a compreender o Islã da maneira mais profunda e, de fato, a miúdo ela é conhecida como a primeira gnóstica muçulmana. Seu casamento com Ali semeou no mundo esta nova manifestação de misticismo, e as sementes de sua união começaram a florescer.
Quando se desenvolveu mais ainda a dimensão mística do islamismo, foi uma mulher, Rabi’a al-Adawiyya (século 8º d.C.) quem expressou pela primeira vez a relação com o divino em uma linguagem que chegamos a reconhecer como especificamente sufi, referindo-se a Deus como O Amado. Rabi’a foi o primeiro ser humano que falou sobre as realidades do sufismo com uma linguagem que qualquer pessoa podia entender. Apesar de que experimentou muitas dificuldades em seus primeiros anos, o ponto de partida de Rabi’a não foi nem o temor ao Inferno nem o desejo do paraíso, senão somente o Amor. “Deus é Deus”, dizia, “por isso amo a Deus… não por nenhum de Seus dons, senão por Ele Mesmo.” Seu objetivo era dissolveu seu Ser em Deus. Segundo ela, pode-se encontrar a Deus voltando-se para dentro de seu próprio Ser. Tal qual disse Maomé: “Quem conhece a si mesmo conhece a Seu Senhor”. Em última instância, é o Amor o que nos conduz à Unidade do Ser.
Ao longo dos séculos, mulheres e homens seguiram levando a luz desse Amor. Por muitas razões, as mulheres foram a miúdo menos visíveis e mais reservadas que os homens, porém, sem embargo, participaram ativamente. Dentro de alguns círculos sufis, as mulheres participavam com os homens nas cerimônias. Em ouras ordens, as mulheres reuniam-se em seus próprios círculos, recordando a Deus e adorando-O separadas dos homens. Algumas mulheres entregaram-se ao Espírito através da ascese, isolando-se da sociedade, como fez Rabi’a, para a eliminação do próprio Eu, em benefício do Ser… Outras optaram pelo trabalho de benemerência – ou terceiro fator –, e fomentaram grupos de oração, rituais e estudos.
Infelizmente, no Ocidente sabemos muito pouco sobre a influência das Mestras sufis. Muitos dos grandes iluminados do sufismo que conhecemos tiveram mestras e discípulas, companheiras e até mesmo esposas-sacerdotisas que muito influenciaram em seus pensamentos e em suas vidas. Esposas e mães também apoiaram os membros de suas famílias, enquanto continuavam sua própria viagem para unir-se com O Amado (o Íntimo, o Ser).
Ibn Arabi, conhecido como o Polo do Conhecimento Superior (séculos 12-13 d.C.), fala do tempo que passou junto a duas anciãs contemplativas que exerceram profunda influência sobre ele: Shams de Marchena, “a dos suspiros”, e Fátima de Córdoba. De Fátima, com quem passou muito tempo, disse:
“Servi como discípulo de uma das amantes de Deus, uma gnóstica, uma dama que vivia em Sevilha, chamada Fátima bint ibn al-Muthanna de Córdoba. Estive a seu serviço durante vários anos, tendo ela uns 95 anos de idade… Ela conseguia tocar o pandeiro e mostrava grande prazer em fazê-lo. Quando perguntei a ela sobre isso, respondeu: ‘Regozijo-me nEle, que me deu atenção e me converteu em um de Seus Amigos, usando-me para Seus próprios fins. Quem sou eu para que Ele deve me escolher dentre todos os seres humanos? Ele se mostra zeloso comigo, pois, cada vez que, de maneira negligente, dirijo minha atenção a algo que não seja Ele, me envia alguma aflição relacionada com esse algo’. Construí-lhe com minhas próprias mãos uma choça de juncos tão alta quanto ela, na qual viveu até seu falecimento. Ela me dizia: ‘Sou tua Mãe Espiritual e a luz de tua mãe terrena’. Quando minha mãe veio visitar-me, Fátima lhe disse: ‘Ó luz! Este é meu filho e Ele é teu pai, portanto, trata-o com amor filial e não o desgoste!’”
Quando perguntaram a outro conhecido mestre, Bayazid Bistami (século 9º d.C.), quem havia sido seu mestre, falou de uma anciã a quem conheceu no deserto. Esta mulher chamou-o de “tirano vaidoso” por haver usado um leão para transportar um saco de farinha, oprimindo uma criatura a que Deus havia aliviado de cargas, e por buscar reconhecimento em tais milagres, mostrando sua vaidade. As palavras daquela mulheres lhe ofereceram guia espiritual durante algum tempo. Outra mulher pela qual Bistami demonstrou grande respeito foi Fátima Nishapuri, da qual disse: “Não havia nenhuma morada (na Senda) da que lhe falara e na qual ela não tivesse estado lá”.
Alguém perguntou certa vez ao grande mestre sufi egípcio Dhun-Nun Mesri quem era, na opinião dele, o maior dos sufis. Ele respondeu: “É uma Santa de Deus, e minha mestra”. Em certa ocasião, ela lhe aconselhou: “Em todos os teus atos, vigia para atuares com sinceridade e em oposição ao teu Ego (em árabe, nafs)”. Ela também disse: “Todo aquele que não tenha Deus em sua consciência esta perdido e se engana, não importa o que diga ou a quem frequente. Sem embargo, quem se mantém em companhia de Deus só fala com sinceridade e sua conduta é regida pelo pudor e uma efervescente devoção”.
A esposa do sufi do século 9º Al-Hakim at-Tirmidhi era uma gnóstica por direito próprio. Às vezes o misterioso Khidr (Jetro, em árabe, o grande instrutor de Moisés) aparecia nos sonhos dela, dando-lhe ensinamentos especiais sobre a autopurificação.
Uma das que mostravam grande alegria em ser mulher era a gnóstica Fedha. Ela ensinava que “a alegria do coração deve ser a felicidade baseada no que sentimos em nosso Interior… portanto, devemos sempre nos esforçar para nossos corações estejam sempre e sempre alegres, até que todo o mundo ao nosso redor também esteja alegre”.

A Grande Santa do Sufismo

O poeta persa Farîduddîn Attâr, em suas Memórias dos Amigos de Allah, oferece a biografia mais extensa e completa de Râbi’a al-‘Adawiyya, uma das grandes santas do Islã e figura indiscutível da espiritualidade muçulmana. Sua obra vem a somar-se a outras, anteriores e posteriores, de autores que apresentam as vidas de mulheres sufis já desde os tempos iniciais da Hégira, pois Râbi’a é o exemplo mais célebre, porém, não o único.
São textos, não todos, nos quais as mulheres aparecem citadas em pé de igualdade com os homens por sua sabedoria, conhecimento e virtude, ou como transmissoras verazes, e graças aos quais se pode recriar, em certa medida, a imagem de um mundo aberto e tolerante que pouco tem a ver com os tópicos acostumados; os ditos transmitidos, com as notas e comentários de seus recompiladores, falam por si só de a sociedade a que essas mulheres pertencem e de seu importante papel nela: mestras de grandes seres espirituais, mulheres livres, mulheres escravas, solteiras, casadas, conhecidas e desconhecidas, místicas e ascetas, respeitadas pelos ulemás da lei islâmica, aos que se dirigem desde o estado que lhes confere seu estatuto de sabedoria e santidade, permaneceram durante muito tempo na memória e na tradição oral da qual logo se inspirariam seus biógrafos.
Entre alguns desses textos podemos citar a Muhamad ibn Saad, que em seu At-Tabaqât al-Kubrâ inclui retratos de todoslos portadores da tradição desde os tempos do Profeta até então, citando numerosas mulheres. O que Al-Jawzî incluirá em seu Sifat as-Sarwa informação sobre 240 mulheres sufis. Uma autoridade importante é Al-Munâwi, que em seus Tabaqât (nome geral dos livros que versam sobre eruditos de uma época determinada), realiza uma autêntica homenagem às 35 mulheres cuja vida oferece da boca dos maiores mestres e sábios da época. Que sirva de exemplo o relato sobre Fátima bint ’Abbâs, sheikha e doutora da lei, sufi versada nas ciências da jurisprudência, porém, sobretudo prova vivente de que nessa época a mulher não havia desaparecido completamente do espaço público e ocupava um lugar central; na mesquita, o coração da comunidade, uma mulher, Fátima, pronunciava um sermão todas as sextas.
Em 1991, apareceu na Arábia Saudíta, entre uma coleção de tratados de As-Sulamî, grande sistematizador do sufismo, una obra perdida há muitos séculos: Tratava-se das Memórias das Devotas Sufis, na qual o autor ilustra a vida e recolhe as palavras de 84 mulheres sufis. A partir dessa obra, juntamente com a de Al-Jawzî, conclui-se inequivocamente a presença de vários movimentos de mulheres ascetas entre os séculos 2º e 3º da Hégira. O trabalho de As-Sulami recolhe ditos de mulheres em paridade com os homens, mostrando-as como mestras de prática e de doutrina e citando cuidadosamente as cadeias de transmissores com autoridade, para abalizar a veracidade de sua exposição: já na introdução de sua Tabaqâtaponta sua visão convergente mediante a Aleya do Sagrado Alcorão: “E se não chega a ser por homens crentes e por mulheres crentes a quem não podeis reconhecer…” (48:25)
Para ele, as mulheres são também “mestras das realidades da Unidade e da Unicidade Divinas, recipientes da palavra divina, possuidoras de visões verdadeiras e de conduta exemplar, e seguidoras dos caminhos dos profetas”, e o testemunham em sua obra mediante uma aparência admirada e respeitosa, e a frequente menção a seu papel como companheiras, críticas e mestras de importantes sufis.
Quando se reconhece a realidade rica e fecunda dessas mulheres excepcionais, parece obrigado a recurrer ao sufismo como único modo possível de explicar a proliferação de mulheres no mundo da espiritualidade muçulmana. Por outro lado, no sagrado Alcorão, Allah dirige-se a miúdo aos crentes, mulheres e homens, por igual: “Porém, os crentes e as crentes são amigos uns dos outros. Ordenam o que está bem e proíbem o que está mal” (7:71).
A inclusão das mulheres aparece de maneira clara na maioria dos mestres sufis, se bem que a miúdo com o matiz peculiar de considerar “homem” todo aquele que adentra na senda espiritual, ainda que seja mulher. Assim, por exemplo, Attâr dirá: “Os santos profetas (a paz seja com eles) disseram: Deus não olha vossas formas. “O que conta não é a imagem, mas a intenção do coração, como ensinou o Profeta: os homens serão reunidos e julgados segundo sua intenção (…). E citando a Abbâs al-Tûsî, continua: “Quando, no Dia da Ressurreição, nos chamem dizendo: “Homens, vinde!”, a primeira  em adiantar-se aos homens será Maria, a mãe de Jesus. Se nesse dia ela não estivesse entre os homens, então deixaria a reunião”. “O significado desta verdade é a igualdade de mulheres e homens na santidade; não há diferença entre os místicos na Unidade do Ser Divino. Nesta Unidade, o que fica da existência do Eu e do Tu? E então, como poderia haver ainda homem e mulher?”
Por sua parte, o grande sufi Abd Ar-Rahmân Al-Jami (século 15) conta que alguém preguntou-lhe: “Quantos são os ‘Abdâl (substitutos, Amigos de Dios)?”. Ele respondeu: “Quarenta almas”. E quando lhe preguntaram por que não havia dito “quarenta homens”, sua resposta foi: “Porque também há mulheres entre eles”.
Nos primeiros séculos da Hégira, as mulheres viviam no centro do espaço público, participando plenamente na vida da comunidade, e assim, no Islã primeiro encontramos Khadija, “a melhor das mulheres”, primeira esposa de Maomé, e a sua filha Fátima; temos também Aisha, a esposa mais jovem do Profeta”, assim como outras mulheres do entorno, totalmente entregues a Deus.
Desde o princípio as mulheres desempenharam papéis importantes na história do Islã: seus nomes aparecem nas correntes de transmissão dos hadith proféticos, formam parte da linhagem espiritual dos calígrafos, são exaltadas como gnósticas e poetisas, sem esquecer as mulheres governantes, e as que aparecem como amigas, mestras e discípulas de grandes seres espirituais muçulmanos. Importantes não só no sufismo, mas na espiritualidade e na comunidade muçulmana em geral, resultaria impossível escrever uma história do Islã sem contar com elas.

Poema de Râbi’a al-‘Adawiyya

Ó minha alegria, meu desejo e meu refúgio,
Meu companheiro, meu amparo no caminho,
Ó meu objetivo!
És o espírito de meu coração.
Tu és minha esperança,
Meu confidente, meu Amigo.
Meu anelo de Ti é minha única riqueza,
Meu ardente desejo, todo meu sustento,
Se não fosse por Ti, ó vida de minha vida,
Não haveria vagado de um lado para o outro
Pela imensidão do país.
Quantas graças me foram reveladas,
Quantos dons e favores Tu tens para mim!
Teu amor é meu único desejo, Teu amor é minha delícia,
A luz que sacia meu sedento coração.
Não me afastarei de Ti enquanto viver,
Não há lugar para mim, senão Tu,
Que fazes florescer o deserto.
Tu és o único dono do meu coração.
Se em mim encontrares contentamento,
Ó anelo do meu coração,
Transbordarei de alegria!
Deus meu, me refugio em Ti para resguardar-me
de tudo que me separa de Ti,
para resguardar-me de tudo que me distrai de Ti
e se interpõe entre Tu e eu.
Ó amado de meu coração,
somente tenho a Ti.
Tem piedade do pecador que vai até Ti.
Ó minha esperança, meu repouso, ó minha alegria,
o coração não quer amar a outro senão a Ti.
Meu repouso, ó irmãos, está em minha solidão,
e meu Amado está sempre comigo.
Nada pode substituir o amor que sinto por Ele,
meu amor é meu suplício entre as criaturas.
Em todas as partes onde contemplei Sua beleza,
Ele tem sido meu mihrab e minha qibla.
Se eu morrer desse amor ardente e Ele não estiver satisfeito,
essa dor seria minha desdita neste mundo!
Ó médico do coração, Tu, que és todo meu desejo,
une-me a Ti com um laço que cure minha alma.
Ó minha alegria, ó minha vida para sempre!
Em Ti, minha origem, em Ti, minha embriaguez.
Abandonei inteiramente todo o criado com a esperança
de que me una a Ti. Este é meu único desejo.
Fonte:http://www.gnosisonline.org/mulher-gnostica/a-mulher-e-o-sufismo/
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